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Boys Love é um tipo de mídia que foca em relacionamentos entre homens, mas nem todos os personagens dessas histórias são homens gays.
Durante um bom tempo, a maior parte dos romances BL que tivemos acesso conta histórias sobre homens supostamente héteros que se apaixonavam por um único homem, enquanto outras eram sobre homens gays sofrendo ao se apaixonarem por homens héteros.
No entanto, neste texto, falaremos de um grupo cada vez mais presente: os bissexuais.
O conceito de pessoas que não restringem a sua atração somente a um gênero não é novidade dentro dos mangás (ou da literatura japonesa), assim, focaremos nos casos em que personagens assumem a bissexualidade com todas as letras dentro da história, por razões que explicarei mais pra frente.
O desafio de representar a bissexualidade
Mangá: Can I Buy Your Love from a Vending Machine?, de YOSHII Haruaki
Uma das particularidades que dificulta a representação da bissexualidade em muitas histórias é o que eu chamo de “apagamento condicional”, que acontece quando um personagem bi entra em um relacionamento. Por vivermos em uma sociedade que prioriza relacionamentos monossexuais (quando se sente atração somente por um único gênero) e monogâmicos, a relação de um indivíduo com um gênero automaticamente reforça a atração por aquele gênero ao mesmo tempo que nega a possibilidade de atração sexual e romântica com outros gêneros.
O que dificulta a situação se levarmos em conta que, na maioria das histórias com foco em romances, os personagens são desenvolvidos somente em torno de um único relacionamento, ou seja, se for pra ter relacionamento amoroso, será somente com um outro único personagem. Muitas vezes, não há tempo ou interesse para desenvolver múltiplos relacionamentos com um mesmo personagem, no qual poderíamos retratar alguém bissexual tendo relacionamentos com gêneros distintos.
Sendo assim, para as más-linguas, se o personagem namora uma pessoa de gênero oposto ao seu, o título de bissexual é só “da boca pra fora”. Se o personagem está num relacionamento com alguém do mesmo gênero, ele é só um “gay em negação”. Nos casos em que um personagem namora alguém de um gênero e, no final da história, fica com alguém de outro gênero, é CERTEZA de que choverão acusações de “viu só??? Ele era gay/hétero esse tempo todo!”.
Para muitas pessoas, se o personagem não for um daqueles estereótipos de bissexuais, que dão em cima de qualquer criatura que se move, ele simplesmente pode ter sua bissexualidade apagada quando for conveniente.
Sendo assim…
Existem Bissexuais no Boys Love?
Mangá: Liquor And Cigarette, de Zariya Ranmaru
A resposta curta é “claro que sim”.
Porém, considerando os problemas levantados anteriormente, pode-se supor que o BL sofra do mesmo problema, afinal, o BOYS de Boys Love deixa bem claro que todas as histórias são sobre relacionamentos entre homens.
Não importa o que veio antes na vida dos personagens, eles vão terminar em um relacionamento com outro homem. Boa parte das histórias BL são curtas, principalmente no Japão, ou só desenvolvem um único relacionamento, o dos protagonistas e olhe lá.
Ainda mais com a tentação de tratar todos os personagens como “praticamente gays”, já que existe uma crença forte de que boa parte dos homens bissexuais são somente “gays em negação”, graças a um coquetel de senso comum, bifobia e masculinidade tóxica.
Porém, meu argumento é de que os bissexuais no mundo do BL – principalmente aqueles que usam a palavra que começa com B – não podem ser apagados tão facilmente.
Inclusive, se olharmos alguns dos clichês mais antigos do gênero sob uma ótica bissexual, eles ganham outros significados (o que planejo comentar daqui a pouco).
Os homens bi existem nesse meio desde antes de chamarmos isso tudo aqui de “Boys Love”. Devem existir outros, mas o mangá BL mais antigo que eu conheço e que menciona a palavra “bissexual”’ é Yatteraneeze!, de Koide Mieko e Akizuki Kou, que foi publicado em 1996.
Tá, o personagem bissexual deste mangá tem atitudes no mínimo questionáveis, mas também é o primeiro a explicar o conceito de orientação sexual para o protagonista.
BL não está atrás do pink money
Vamos deixar algo claro antes de continuar: o Boys Love tem o potencial de ser um espaço de descoberta, questionamento e representação para muitas pessoas. Muita gente, ao redor no mundo, teve seu primeiro encontro com personagens LGBTQ+ através dos mangás BL. Para outros, eles são uma das únicas formas de ler histórias nas quais se sentem representados em seu próprio país sem correr muito risco, porque são só “romances para meninas”.
Independente do que digam, vários pesquisadores ao redor do globo e relatos de inúmeras pessoas dentro do fandom já comprovam que esse potencial existe e atinge novos fãs todos os dias. Recomendo que procurem os artigos e livros escritos por pesquisadores, como Yukari Fujimoto e Thomas Baudinette, caso tenham interesse no assunto. Inclusive, vocês podem conferir um texto traduzido da Yukari aqui no próprio Blyme.
Dentro dos mangás BL, cada vez mais, cresce a representação de obras que retratam as dificuldades e os medos de ser um homem gay no Japão e em outros países da Ásia ou que apresentam relacionamentos mais realistas, de acordo com a vivência de pessoas LGBTQ+ nesses países.
Mangá: Pink Heart Jam, de Shikke
Porém, entretanto, todavia… BL não é vendido assim, nem pretende ser um exemplo de ativismo LGBTQ+. Essa não é a proposta do BL, porém, repito: isso não é exigido do gênero no Japão, seja pelo público que o consome ou pelos ativistas japoneses. A própria comunidade queer japonesa e as feministas fãs de BL já tiveram uma discussão gigante nos anos 1990 sobre isso, o chamado Yaoi Ronsou (O Debate do Yaoi), que não é o tema deste texto.
Um mangá BL não se destaca por ter um romance entre dois homens, porque esse é o esperado, ele compete pelo seu dinheiro com outros 200 mangás sobre romance entre homens na mesma livraria.
Uma capa bonita ou os dubladores do BLCD podem influenciar mais o sucesso de um título do que se a autora fez um retrato realista da comunidade gay japonesa.
“Boa representação” não é a isca para o público, porque o público não procura representação LGBTQ+. O público – que, em boa parte, é composto por pessoas da comunidade LGBTQ+ – faz parte de um nicho que procura uma boa história.
Mangá: Chéri, My Destiny!, de Okoge Mochino
Não porque é obrigatório ou para chamar atenção, mas porque o autor quis assim. Porque o autor ou autora acredita que esses elementos tornam a história melhor.
O mesmo vale para a introdução de personagens bissexuais.
A palavra que começa com B
Dentro dos animes e mangás, personagens que demonstram atração por todos os gêneros não são algo novo. Acredito que a maior parte dos otakus consegue listar pelo menos um ou dois personagens que “jogam nos dois times”. Só de cabeça, posso listar exemplos bem óbvios, como Shinji Ikari (Neon Genesis Evangelion) e Yuuri Katsuki (Yuri!! On Ice), ou, pelo menos, 65% do povo nos mangás da CLAMP.
No entanto, uma frustração comum por parte do público ocidental é que, apesar de dentro do texto esses personagens serem explicitamente queer, é raro as declarações de que um personagem pertence a alguma minoria sexual ou de gênero de fato.
É uma crítica compreensível, pois, a falta de uma declaração “oficial” por parte da obra e deixar o assunto para a interpretação do leitor cria precedente para que outros possam negar a sexualidade retratada ali ou fazerem leituras de má fé. É o medo do apagamento e, quando lembramos dos problemas já presentes na escrita de personagens assumidamente bissexuais, a presença dos rótulos vira uma necessidade para muitos leitores.
Mangá: Koi no Shikata ga Wakaranai, de Machio Yu
Em contrapartida, a falta de declarações e rótulos permitem que muitos autores possam abordar esses assuntos por “debaixo dos panos”, sem despertar a ira de grupos conservadores ou de associações de pais e mestres (conhecidos no Japão por incentivarem a censura dentro dos animes e mangás). Evitar “tocar no assunto” de maneiras mais diretas, muitas vezes, é a saída para abordar as ideias que o(a) autor(a) quer abordar.
Sendo assim, pensando na sociedade japonesa, onde a afirmação da orientação sexual tem um peso político grande, é um sinal positivo ver a presença cada vez maior de personagens declarando que são gays ou bissexuais.
Esse é um reflexo de um Japão cada vez mais a favor dos direitos da comunidade LGBTQ+. Segundo uma pesquisa divulgada em 2023 pela Pew Research Center, quase 70% da população japonesa é a favor do casamento homoafetivo. Era uma questão de tempo até que esse tema se fizesse cada vez mais presente dentro da mídia japonesa e asiática.
“Ah é… eu sou bi” e reinterpretando clichês
Mangá: Sensei, Mou Dame Desu, de Kashima Chiaki
Algo que pessoalmente aprecio na presença da bissexualidade em histórias BL é a… de como tudo é bem casual? Em certos mangás, a bissexualidade de um personagem não será um potencial conflito dentro da narrativa, é uma característica do mesmo nível de “gosto de doces” ou “usa óculos”.
Porém, quando se trata de explorar os medos e as angústias que costumam afligir casais com bissexuais, muitos desses conflitos já existem dentro das obras Boys Love, sem estarem associados especificamente a eles.
Um exemplo é o receio de que o casal termine a relação e um deles acabe casando com uma mulher. Esse medo é mais alimentado pela forte pressão social que existe na sociedade japonesa para que todo homem cumpra o seu papel social de se casar e ter filhos, independente da orientação sexual.
É um drama causado pelo medo de ver a pessoa amada transformada em um pária social e pelo incentivo impregnado na mente de um país coletivista para atender às expectativas dessa mesma sociedade injusta.
Essa questão é citada diretamente em Therapy Game, de Meguru Hinohara, em uma cena na qual Shizuma pesquisa sobre a vivência LGBTQ+, justamente para entender a insegurança de Minato com relação ao namoro dos dois.
Mangá: Therapy Game
Tradução da fala destacada: “Não me diga que ele realmente acha que eu escolheria ficar com uma mulher só para ser igual a maioria?”
Aliás, Therapy Game é um ótimo exemplo de um BL que aborda diretamente essas questões com um personagem abertamente bissexual como Meguru. Foi essa obra, com Pink Heart Jam e Liquor and Cigarette, que me deu a ideia de escrever sobre esse tema.
Outro grande clichê que ganha uma interpretação diferente quando observado pela perspectiva da bissexualidade é a famosa frase “eu não sou gay, eu só gosto de você”.
Antes que venham com pedras na mão, esse clichê pode ser reinterpretado como algo que acontece com pessoas bissexuais, que passam boa parte da vida pensando que possuem uma certa orientação sexual até encontrarem alguém que joga tudo de cabeça pra baixo 😉
O clichê acaba sendo menos uma forma de negar que o protagonista é gay e só não quer admitir, mas sim uma maneira de não invalidar a atração que ele sentiu anteriormente por mulheres.
Nem tudo são flores
Apesar de ser muito interessante tudo que escrevi até agora, lógico que isso tem limites. No fim das contas, histórias BL são sobre um romance entre dois homens, não existindo a chance de terminar de outra forma.
Mangá: Anti Platonic, de Yupopo Orishima
O leitor ou a leitora não precisa se preocupar com a possibilidade do personagem acabar escolhendo uma mulher no final da história. Até podem existir relacionamentos com mulheres no meio do caminho, mas a “alma gêmea” destinada será um outro homem.
Apesar de todas as qualidades que mencionei anteriormente, os temidos estereótipos sobre bissexuais (de que eles não são fiéis, de que dão em cima de qualquer coisa que se mexem, de que não são confiáveis, entre outros) também estão presentes dentro do gênero. É uma faca de dois gumes nesse sentido, em que tanto as possibilidades ruins quanto as boas podem aparecer com frequência devido ao escopo gigantesco do Boys Love atualmente.
Mangá: Therapy Game
O Boys Love pode até ter personagens bissexuais, mas ainda é limitado em retratar todas as possibilidades da experiência de ser bissexual. Não que eu exija que o BL, ou qualquer outra obra, faça isso 100% das vezes.
Embora eu tenha feito todo este discurso bonito, preciso confessar que o discurso de representação é, em certas horas, sufocante. Como se as pessoas estivessem comemorando um balde de água fria sem ver o incêndio que as rodeia.
É importante lembrar que o BL é um nicho, então, qualquer discurso positivo dentro dessas obras, muitas vezes, vira um espetáculo para os convertidos. O fandom fujoshi/fudanshi/fujin já é composto, em grande parte, por integrantes da comunidade queer.
Conclusão
O universo do BL é um universo de possibilidades, no qual as pessoas podem explorar os mais diversos aspectos da ficção sob uma ótica queer sem, necessariamente, ficarem presas às correntes do que é aceitável para as pessoas de fora. Somos um bando de pessoas esquisitas, escrevendo coisas esquisitas porque é, antes de tudo, divertido.
Muitas pessoas já enxergam bissexuais como esquisitos, pessoas que “falharam” num nível tão fundamental em nossa sociedade porque “não conseguem decidir o que querem”. Em um nível muito menor, consigo enxergar certos paralelos entre esses cenários.
Não enxergo o BL como um oásis para quem deseja ver personagens bissexuais em toda sua glória roxa, rosa e azul, mas, pelo menos, posso dizer que consigo encontrar mais possibilidades do que em outras mídias. Não é perfeito, nem tenta ser, mas, do meu ponto de vista, esse pequeno nicho de quadrinhos japoneses consegue ser mais reconfortante e interessante do que muitos acreditam à primeira vista.